Para quem não teve a ventura de conhecer RANGEL CAVALCANTE, merece ler algo sobre o seu perfil para admirá-lo e se juntar a nós na saudade que nos deixa com sua morte.
Melhor que minhas palavras vou transcrever um belíssimo texto de PAULO JOSÉ CUNHA, não menos brilhante, publicado no Correio Braziliense de hoje:
RANGEL CAVALCANTE, UM COLEGA INESQUECÍVEL
PAULO JOSÉ CUNHA Jornalista e escritor
Existem dezenas de motivos para se lamentar a morte do jornalista Rangel Cavalcante. Mas uma frase é suficiente para justificar a tristeza de todos nós que convivemos com ele: era inteligente, divertido e sábio. Principalmente sábio, porque só os sábios riem de si próprios. E ele não apenas ria: gargalhava. Raciocínio rápido e afiado era terrível, principalmente com os amigos. Uma vez descobriu que eu tinha feito amizade com alguns estrangeiros. Espalhou que eu tinha passado a andar com eles pra ver se ficava mais inteligente…
Além do texto preciso e criativo, era altamente exigente com a gramática. Não poucas vezes ligou para Alexandre Garcia, colega comum desde a sucursal do Jornal do Brasil, onde nos conhecemos, para reclamar da construção equivocada no texto da matéria de algum repórter da TV Globo. Quando saiu o filme Que horas ela volta, indignou-se. Ligou-me pedindo que interferisse junto à editora de Opinião do Correio Braziliense, jornalista Dad Squarisi, especialista em gramática, minha parceira no tira-dúvidas de português 1001 Dicas-Manual descomplicado. “Como é que um filme que vai representar o Brasil lá fora já sai daqui com um erro de português no título?” Dad escreveu um artigo registrando a indignação dele.
Durante a ditadura, ao prestar depoimento num quartel sobre uma foto em que aparecia cortando cana em Cuba, explicou-se: “Mas claro que eu não estava ajudando o regime do Fidel. Estava era preparando o facão para dar um golpe naqueles comunistas!” O militar que o interrogava danou-se a rir, diante de explicação tão disparatada.
Quando meu filho nasceu, pus nele o nome de meu pai. E, seguindo a tradição da família, acrescentei uma vírgula antes da palavra “neto”, assim mesmo, no diminutivo. 0 cartório não aceitou. Ao saber do fato, Rangel lembrou-se de que era advogado e bradou na redação: “Vamos às barras dos tribunais, exigir nossos direitos. Tudo por uma vírgula!” E fomos, sob aplausos da redação, que nem Dom Quixote e Sancho Pança, carregando cópias de certidões de nascimento de personalidades como Odylo Costa, filho de Torquato (Pereira de Araújo), neto, todos com a bendita vírgula no nome, para provar a tradição familiar. 0 fato saiu na imprensa quando nossos colegas souberam da história do menino que não podia ser registrado por causa de uma vírgula. E nós ganhamos a, digamos, causa.
Às vezes retornava à redação do JB de mãos vazias, sem matéria para entregar ao então editor Ricardo Noblat, que uma vez indagou: — E por que hoje não teve matéria, Rangel?
“Porque os fatos se recusam a acontecer!”, respondeu, muito sério, arrancando nossas gargalhadas.
Uma vez, na rua, um menino o interrompeu. Não para pedir esmola, mas para que lhe comprasse um caderno escolar. Foi à papelaria mais próxima, comprou o caderno e deu ao menino. Subiu à redação com os olhos encharcados, contando a história e esbravejando contra a injustiça de um país que deixa seus filhos ao deus-dará, enquanto desperdiça tantos recursos com as farras dos ladrões do erário.
Em 1976, quando Juscelino Kubitscheck morreu, fomos escalados para ir à Fazendinha JK, em Luziânia, perto de Brasília, onde JK gostava de descansar, repercutir a notícia. Ainda não havia celular. Era de manhãzinha quando chegamos e logo percebemos que ali ninguém sabia do acidente. “ Rangel, meu amigo, vamos ser os arautos da má notícia”, comentei, preocupado. Acalmou-me: “Vamos frer tudo com olhos de sentir, não vamos procurar saber pela boca dos outros. Vamos usar apenas a sensibilidade”. Jovem repórter, não resisti às perguntas tradicionais aos empregados sobre como JK agia quando estava na fazenda, o que gostava de fazer, essas coisas. Rangel limitava-se a olhar demoradamente, a examinar. Procurava… sentir. Enquanto eu terminei escrevendo uma matéria convencional, ele produziu um texto belíssimo que começava falando de Luzia, a lavadeira negra que vimos chorando sozinha, em silêncio num canto isolado da casa, segurando um cabide de onde pendia o casaco que Juscelino usava nas noites de frio e que ela acabara de passar a ferro para quando ele chegasse. Aprendi ali a lição inesquecível de que ao repórter, cabe, às vezes, olhar mais e indagar menos.
Rangel, nosso magro de aço do Ceará, amigo da boa prosa e amigo dos amigos, era desses jornalistas que não se fabrica mais. Jornalistas que perguntam pouco mas que sabem ler o mundo . Só de olhar com atenção e sensibilidade.”
Graças a Deus pude conviver com essa raríssima figura.
Que maravilha a historia de vida desse jornalista
RANGEL CAVALCANTE!! Pena ele ter morrido doi né
Alem de competente uma figura humana extraordinária. Vou ter oportunidade de escrever mais sobre ele. O Paulo José vai me entregar cópia de uma entrevista que fez com ele na TV Câmara, realmente encantadora.
Não conheci o Rangel. Mas, pelas palavras que o descrevem e por ser amigo de Henrique e do meu eterno professor Paulo José Cunha, percebo o quanto deve ter sido ser humano extraordinário.
agradeço o comentário e em especial as referências. O Rangel a essa altura deve estar dando gargalhadas.. Como disse o Paulo José ele ria dele mesmo e por mais complexa que fosse a situação ele sabia como contornar com sabedoria e muito humor..